‘Tenho medo de morrer na própria aldeia’: como ‘cacique-modelo’ da Amazônia se tornou alvo de índios madeireiros
Enquanto
percorria um trecho de terra na garupa da moto pilotada pelo filho
Pilatos, de 25 anos, ambos perceberam que eram seguidos por um carro com
três pessoas.
O
veículo ultrapassou e bloqueou a moto. Um homem desceu. Com o dedo no
rosto de Agamenon, avisou que ele e o irmão deveriam "tomar mais
cuidado".
- A imagem de urso-polar com lata presa na boca que serve de alerta para o lixo jogado no mundo
- O capacete feito de papel que ganhou um dos principais prêmios de inovação do mundo
O
irmão em questão é Almir Narayamoga Suruí, de 42 anos, chefe dos
paiter-suruís e um dos principais líderes indígenas do Brasil.
O
episódio na estrada é sinal do agravamento dos conflitos na TI (Terra
Indígena) Sete de Setembro, localizada entre Rondônia e Mato Grosso e
que nos últimos anos foi considerada a grande promessa de uso da
tecnologia para proteger a floresta na Amazônia.
"Tenho
medo de morrer. É um risco que corro a todo o momento. As pessoas acham
que me matando vão poder explorar madeira numa boa. Sou alvo não só
pelos madeireiros e garimpeiros, mas também pelos índios madeireiros",
afirmou Almir à BBC Brasil.
Ele
é um dos chefes indígenas mais viajados do país - já rodou por países
distantes como Turquia e Indonésia, acumulou prêmios e distinções
enquanto faz lobby por parcerias internacionais para preservar os
recursos naturais na reserva dos paiter-suruís.
Nesse trabalho, costurou acordos com grandes empresas daqui e de fora, ONGs ambientalistas e políticos em Brasília.
Ganhou
fama em 2008, quando fez um acordo com o Google para monitorar o
desmate na terra indígena - índios ganharam celulares para registrar
extração ilegal de madeira, capturar fotos e vídeos geolocalizados e
fazer upload no Google Earth.
Em
2012, os paiter-suruís se tornaram a primeira nação indígena do mundo a
fechar contratos nos quais eles faturam ao evitar desmatamentos em seu
território - houve acordos com Natura e Fifa, que renderam ao menos R$
1,2 milhão.
Nos
últimos anos, contudo, discordâncias sobre o uso dos recursos
reacenderam divisões históricas entre os suruís e situação saiu de
controle na Sete de Setembro - uma área de 2,4 mil km² (ou duas vezes a
cidade do Rio de Janeiro) e 1,3 mil índios espalhados por 25 aldeias.
O
desmate ilegal dentro da TI Sete de Setembro saltou de 85 hectares em
2013 para 496 hectares (cerca de 500 campos de futebol) em 2015, segundo
a ONG Idesam (Instituto de Conservação e de Desenvolvimento Sustentável
da Amazônia).
Descontrole
A
terra dos suruís (ou paiter, como se intitulam) fica em um dos
principais focos do chamado "arco do desmatamento", região em que a
fronteira agrícola avança em direção à floresta e responde pelos maiores
índices de desmatamento da Amazônia.
Segundo
Almir, hoje 15 das 25 aldeias da terra indígena estão envolvidas em
exploração ilegal de recursos naturais. Cinco se opõem à presença de
madeireiros e cinco estão divididas, afirma.
"A
floresta não precisa ser intocável, mas deve ser usada com planejamento
e critério. Somos contra a forma como a madeira está sendo retirada",
diz o líder dos paiter-suruís.
Índios
contrários ao desmatamento estimam que 300 caminhões lotados com toras
de madeira deixem a Sete de Setembro todos os meses - avaliação
endossada pelo Ministério Público Federal, que acompanha o conflito na
região.
As
árvores mais procuradas hoje são cerejeira, cedro, ipê, caixeta, garapa
e castanheira. O ipê é considerado o novo mogno, muito explorado nas
décadas de 1980 e 1990 e hoje praticamente extinto na floresta.
"A
situação é frágil e delicada. Madeireiros assediam índios com coisas
que o Estado não consegue suprir, como saúde e educação, e com outras
que o Estado nem supriria, como dinheiro para carros e motos. Algumas
lideranças se acostumaram com essa renda, o que torna o problema
histórico", afirma o procurador da República Henrique Heck.
Histórico
De fato, a relação dos suruís com a exploração ilegal de madeira não é nova.
Contatada
pela primeira vez em 1969, essa tribo amazônica chegou a perder 90% da
população para a tuberculose e o sarampo antes mesmo do nascimento de
Almir, em 1974.
A
terra indígena foi homologada em 1983, mas sofreu impacto, nos anos
seguintes, de projetos de colonização e também invasões de pequenos
agricultores.
Os
suruís passaram então a ser conhecidos pela venda de madeira a
extratores ilegais - situação que motivou divisões internas e
desagregação social.
Aos
15 anos, ainda com pouco conhecimento de português, Almir aceitou
convite da Universidade Católica de Goiás para estudar Biologia
Aplicada. Formou-se em 1992 e foi eleito chefe dos Gameb (marimbondos
pretos), um dos quatro clãs paiter-suruís.
Casou-se, teve filhos (três, hoje com 22, 21 e 19 anos) e passou a planejar programas de agricultura sustentável em sua aldeia.
"Mas
líderes tribais mais velhos - a maioria com menos de 40 anos, como
efeito das pragas devastadoras dos anos 1970 - tinham outros planos",
afirma, em referência aos interesses dos índios madeireiros, o
jornalista americano Steve Zwick, que trabalha em uma biografia de
Almir.
Ao
final dos anos 1990 Almir Suruí já era um líder indígena conhecido em
Rondônia. Gradativamente, começou a trabalhar em um plano para uso das
terras suruís nos 50 anos seguintes.
Acordo
O
acordo com o Google trouxe novas perspectivas para a tribo, e em 2009
Almir costurou um pacto entre os quatro clãs para encerrar o histórico
ciclo histórico de exploração ilegal de madeira dentro do território.
Em 2012, a redução acumulada de desmatamento somava 511 hectares, o que permitiu as parcerias de venda de créditos de carbono.
Foi
o primeiro projeto em área indígena a explorar o chamado Redd (Redução
de Emissões por Desmatamento), instrumento de compensação financeira
pela manutenção de florestas tropicais e redução do gás carbônico
responsável pelo aquecimento global.
A
promessa de solução, contudo, começou a incentivar velhas (e novas)
divisões. Alguns líderes suruís reclamaram da gestão, por Almir, do
chamado Fundo Paiter, criado para administrar o dinheiro desses
projetos. Apontavam demora na liberação, centralização de decisões e
ausência de benefícios para as comunidades.
O
chefe suruí nega as acusações. "O dinheiro foi repassado corretamente
para as associações (dos clãs suruís) de acordo com os projetos,
conforme foram apresentados para nós. Nossa prestação de contas é clara e
transparente", afirma.
Em
julho deste ano, a pedido do Ministério Público Federal, que atendeu a
reclamações dos setores insatisfeitos, a Justiça chegou a bloquear a
movimentação do fundo (que ainda tinha R$ 500 mil em caixa). Os recursos
acabaram liberados após uma reunião entre os clãs.
Agravamento
A
indisposição com o projeto levou parte dos suruís a retomar a
exploração ilegal de madeira, ouro e diamante, bem como o arrendamento
de terras para fazendeiros.
Segundo
relatos coletados pela reportagem, índios madeireiros esperavam obter
mais renda ao interromper o ciclo de desmatamento, o que não ocorreu.
Resultado,
segundo Almir: além de madeireiros e fazendeiros, há também garimpo na
terra indígena. Com apoio dos índios, aliciados com armas e pagamentos
mensais de até R$ 5 mil, os grupos estariam atuando em ao menos 20
pontos da área.
A
suposta omissão dos órgãos públicos agrava a situação, afirma o líder.
"Já fizemos várias denúncias e nada acontece. Dizem que não podem
prender índio e os índios sabem disso."
Em
razão desse quadro, a Procuradoria entrou na Justiça na semana passada
contra Funai (Fundação Nacional do Índio), Ibama (Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e os Estados de
Rondônia e Mato Grosso.
A
ação pede que os órgãos e governos sejam obrigados a realizar uma série
de ações de fiscalização e apoio a atividades sustentáveis pelos
índios, como coleta de castanhas.
Diz ainda que a "criminalidade recrudesceu" dentro da terra indígena em razão da "fiscalização acanhada dos órgãos públicos".
Aponta
que "muitos indígenas foram cooptados pelas madeireiras" e que a
"sensação de impunidade prepondera" no local, o que faz aumentar a
adesão de índios à atividade ilegal.
"Se a situação continuar assim, há possibilidade de descaracterização total do território em médio prazo", afirma Henrique Heck.
A
reportagem entrou em contato com os governos de Rondônia e Mato Grosso
para comentários sobre a ação da Procuradoria, mas não obteve resposta
até a publicação desta reportagem.
Em
nota, a Funai disse ter conhecimento do cenário na Sete de Setembro e
que tem feito fiscalizações na região. Reconheceu, contudo, que o
"grande desafio" hoje é integrar esferas de poder e complementar
monitoramento com políticas de sustentabilidade para índios e cidades do
entorno.
"Sem
alternativas de renda no entorno para as populações não indígenas, a
pressão sobre as terras indígenas cresce cada vez mais, ameaçando os
recursos naturais e a segurança dessas comunidades", informou o órgão.
Medo
Enquanto
isso, hoje o "cacique tecnológico" Almir Suruí está praticamente
sitiado em sua própria região - mora com a família em Cacoal, cidade de
78 mil habitantes a 480 km de Porto Velho, vizinha da terra indígena
Sete de Setembro.
Vive escoltado pelos irmãos, nunca viaja sozinho e evita ir ao supermercado ou sacar dinheiro sem estar acompanhado.
"Não
gostamos que o Almir vá a nenhum lugar sozinho, nem dentro da nossa
própria terra, porque há uma parte grande do nosso povo contra o
trabalho dele. A gente também vive com medo de branco matar o Almir.
Branco madeireiro, fazendeiro, garimpeiro. É muita preocupação", diz o
irmão Mopiri Suruí, de 56 anos.
Almir
chegou a contar com proteção de agentes da Força Nacional de Segurança
entre 2012 e 2013, mas desistiu. "Era uma proteção e não uma solução. A
solução é acabar com a exploração ilegal."
Com
98 quilos distribuídos em 1,68 m, fã de Raul Seixas e tubaína, torcedor
do Flamengo, apreciador de camionetes e membro de 23 grupos do
WhatsApp, ele diz ter desenvolvido gastrite ao conviver com ameaças de
morte.
E às vezes ameaça desistir de tudo e se dedicar somente à família. "Se é explorar madeira o que o meu povo quer, tudo bem."
Por
força da deterioração da situação na terra indígena que um dia foi
modelo de recuperação sustentável, organizações internacionais articulam
uma campanha, com abaixo-assinado e pedido de doações online, em que
alertam para uma "situação de emergência" na terra dos paiter-suruís.
"Minha
maior preocupação é que assassinem o meu filho. É muito difícil para
mim como mãe. Ele vem trabalhando, defendendo a floresta para trabalhar
de forma sustentável, mas nosso próprio povo prefere o dinheiro fácil da
madeira e do garimpo. Meu medo é porque sei que há pessoas contra ele e
o trabalho dele. Só Deus para me aliviar. Só Deus", diz Weytanb, 88
anos, mãe de Almir.
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